Converso com pessoas de esquerda e a mensagem é clara: a extrema direita é o mal que precisa ser derrotado. Converso com pessoas de direita e a mensagem é clara: o comunismo é o mal que precisa ser derrotado. A polarização política se tornou uma luta do bem contra o mal, e todo mundo acha que está ao lado do bem. Seria irracional pensar que a maioria das pessoas tem consciência de que “estão ao lado do mal” e que defendem esse lado mesmo assim.

A esquerda erra ao assumir o “maniqueísmo político” como tática de enfrentamento à extrema direita. Por mais que se tenham dados para fundamentar a narrativa das atrocidades que a união do conservadorismo ideológico com o neoliberalismo trazem para a classe trabalhadora, taxar a extrema direita como “o mal a ser derrotado” ajuda a reforçar o discurso contra a esquerda. Espero aqui explicar o porque desse erro e buscar possíveis saídas para uma disputa com a direita que passe por endereçar a raiz dos problemas sem cair na “catimba” do adversário.

De origem católica, fui criado desde muito cedo para identificar o “mal” e sempre lutar contra ele. Deus contra o Diabo. Homens de bem lutando contra os que atacam aquilo que é santo. O maniqueísmo (essa luta do bem contra o mal) é a base da formação ideológica do povo brasileiro, em sua maioria cristão. Nosso país foi formado a partir da união da religião, que imprimia através da violência o cristianismo como única opção de manifestação religiosa, e da classe dominante portuguesa que usava desse aparato ideológico e violento para enriquecer saqueando a colônia.

Séculos de manutenção desse aparato ideológico, reforçado por um avanço da narrativa individualista construída ao longo do século XX, fazem com que esse recurso de luta do bem contra o mal seja um caminho fácil para expor contradições e conquistar corações. O ódio é uma ferramenta poderosa de mobilização. Então por que não usá-lo contra a extrema direita? Porque quando a direita tem o aparato religioso a seu lado, pintar o adversário de mal reforça a narrativa que os religiosos tem sobre sobre a esquerda. Está no evangelho de Lucas 6:22-23:

“Felizes de vocês se os homens os odeiam, se os expulsam, os insultam e amaldiçoam o nome de vocês, por causa do Filho do Homem. Alegrem-se nesse dia, pulem de alegria pois será grande a recompensa de vocês no céu, porque era assim que os antepassados deles tratavam os profetas.”

Ou seja, quando a esquerda fala que os cristão que apoiam a extrema direita estão defendendo o mal, então grande será a recompensa daqueles que defendem a direita pois ela estã “ao lado” da defesa dos costumes e da tradição cristã. Vale lembrar que o maniqueísmo tem sua raiz exatamente nesta tradição fortemente dogmática. Esse é um campo que a esquerda não consegue disputar com o conservadorismo. Pois não é possível defender a solidariedade entre as pessoas sem trazer à luz a liberdade religiosa, a liberdade de constituição de afeto, família e reprodução, temas tão caros ao conservadorismo cristão. Nem é possível atuar na manutenção de dogmas com materialismo.

É importante entender como o maniqueísmo foi capturado pela direita em favor de seu discurso. A versão mais atual da direita usa o conservadorismo da população para capturar ideologicamente a classe trabalhadora em torno de um projeto econômico que prejudica a própria classe trabalhadora. No Brasil, essa direita ganha novos contornos quando é promovida por pastores que participam ativamente da política - 203 dos 513 deputados integram a Frente Parlamentar Evangélica - e dentro de comunidades que se protegem do discurso classista - é comum o patrão e o empregado frequentarem o mesmo culto. Ou seja, se o maniqueísmo tem origem no cristianismo e esse cristianismo é trazido para o campo político por pastores que em sua maioria são conservadores de direita, politizar o discurso do bem contra o mal é desfavorável à esquerda.

No Brasil a chegada da esquerda ao poder se deu de mãos dadas com o conservadorismo e o neoliberalismo. Houveram, sim, avanços nos programas de bem-estar social. Mas ao mesmo tempo que não foi promovido um debate amplo dentro de uma agenda de costumes e reformas que permitissem reverter o cenário de acumulação de riqueza por parte dos mais ricos. Enquanto a conciliação de classes foi possível, a esquerda no poder serviu para trazer para institucionalidade os movimentos de base, desarticulando boa parte de seus agentes. Quando veio a crise, a conciliação de classes não era mais possível. A direita usou da corrupção durante os governos de esquerda - vale lembrar que a maioria dos condenados são de partidos de direita - para criticar a burocracia e corrupção do sistema. E, aproveitando-se de um movimento de base desarticulado e do advento das redes sociais para espalhar notícias falsas, criou uma narrativa que pintava a esquerda de perversa - o tal “kit gay”. Assim, dois fatores taxaram a esquerda do “mal em sua pior versão”: (i) a esquerda é o “sistema”; (ii) o “sistema” é corrupto e pervertido. Bastou um candidato que emplacou a narrativa de ser anti-sistema e defensor da “moral e da ordem” para que o maniqueísmo fosse cooptado pela direita como o mote de seu discurso político.

Mas como enfrentar a direita se não mostrando sua face “má”? Acredito ser esse o maior desafio da esquerda hoje. Mesmo que a esquerda retome posições de poder dentro da institucionalidade, a extrema-direita e o conservadorismo continuarão vivos e cada vez mais fortes. Em um mundo em que tudo é transformado muito mais rápido do que a capacidade de as pessoas e as sociedades se adaptarem, o conservadorismo serve como uma bússola. Para algumas pessoas as coisas até podem mudar, mas algumas coisas precisam ficar como está para que não se percam. Essa agenda de manter as coisas como estão está hoje dentro da religião e sua pauta de costumes.

Tenho pensado em alguns caminhos, ainda de forma bastante preliminar. Gostaria de colocar três deles.

O primeiro passa por criar espaços de apoio social para a classe trabalhadora, centros de convivência fora do culto religioso. Ainda que a religião cumpra um papel importante na vida de boa parte dos brasileiros, o espaço das igrejas é em muitos lugares um importante (se não o único) espaço de troca comunitária. Dentro do cristianismo, em especial nos segmentos neopentecostais, o apoio entre membros de um culto é bastante estimulado. É muito comum um pequeno empresário da comunidade só contratar pessoas que conhece através de seus comunidade religiosa. É preciso retomar o senso de comunidade num sentido mais amplo, que vai além da religião e de seus dogmas.

O segundo é mudar o cerne do discurso para apontar as contradições do discurso conservador ao invés de usar um discurso moral. Afinal, se a moralidade serve como bússola emocional num mundo em constante mudança, quebrar essa bússola pode ser insuportável para a maior parte das pessoas. Portanto, precisamos apontar para o fato de que os caminhos para os quais a classe trabalhadora está sendo levada ao seguir essa bússola geram ainda mais desconsolo. Por que a ideia de prosperidade pela fé - “Deus proverá” - não tira as pessoas da miséria? Por que os jovens da periferia, mesmo depois de formados e pagando a universidade com dívida e suor, não conseguem ter um aumento salarial significativo?

O terceiro está no cuidado a respeito de quem fala com o público mais religioso, doutrinado dentro desse maniqueísmo critão. Ao longo dos últimos anos, a classe artística no Brasil, a maioria mais progressista nos costumes, foi taxada de pervertida (e corrupta, via Lei Rouanet) dentro da prática religiosa cristã. A arte, por princípio, afronta diretamente os dogmas estabelecidos. Portanto, dentro dos dogmas religiosos a arte cai facilmente na narrativa do “mal”. Quando artistas - e o mesmo vale para jornalistas e acadêmicos - usam seu alcance para apontar a maldade do conservadorismo brasileiro, criam a narrativa perfeita para, além de não serem ouvidos, serem colocados em descrédito. É criada uma bolha em que cada um fala “para os seus”. Precisamos utilizar os espaços de influência para promover o debate e permitir que pessoas inseridas na realidade das comunidades possam ter voz. É preciso encontrar na base aqueles que tem consciência de classe e amplificar sua voz.

A esquerda terá muito trabalho para retomar o diálogo ideológico com a massa trabalhadora. Desconstruir a imagem do “mal a ser vencido” passa por abandonar o discurso moral e paternalista usado pela direita e buscar o diálogo por outras vias.